Talvez o leitor tenha acompanhado pela imprensa a história do acidente do Michael Schumacher. Desde o domingo do acidente (29/12), quando as notícias informavam uma piora no quadro de saúde, tenho procurado notícias a respeito. Naquele dia imaginei que uma notícia mais grave podia sair a qualquer momento. Fui dormir às 3 da madrugada.
Depois dos primeiros procedimentos (inclusive uma cirurgia) e análises de exames, vieram os informes médicos. Crítico, mas estável. Duas palavras que estão sendo muito repetidas nos últimos dias. Os médicos não dão boletins desde a última terça (31/12). Informações novas são transmitidas pela porta-voz Sabine Kehm (um aplauso para ela por sua atuação profissional) e ela inclusive desautorizou a fala de Philippe Streiff, ex-piloto de Fórmula 1, que disse que a vida de Schumacher não está mais em risco. Hoje um jornal francês já trouxe outra informação dizendo que foi feita uma tomografia no último sábado e o resultado foi ruim. Ninguém confirmou nem desmentiu ainda.
Capacete rachado. Estado crítico, mas estável. Novidades positivas nos dois ou três primeiros dias, e depois um longo tempo sem novos boletins médicos. Algum mistério em relação às circunstâncias da batida. Tudo isso me faz recordar um fato ocorrido há dez anos e que foi muito marcante pra mim: o acidente do japonês Daijiro Kato, em Suzuka, na prova que abriu a temporada 2003 da MotoGP. Da mesma maneira, esperei notícias até alta madrugada. Foram duas semanas entre o acidente e a morte e todos os dias eu tinha que ler um "estável". Até por isso fui surpreendido pela notícia da morte, porque imaginei que, se ela viesse, primeiro teria que desaparecer a palavra "estável" dos boletins. E não foi assim.
Relutei em escrever estas linhas por dois aspectos. Primeiro, pode passar a sensação de que estou "matando" o Schumacher - e isso mum momento em que todos estão com as emoções afloradas. Nada disso. Apenas comparo a informação existente com uma experiência já vivida e constato algumas semelhanças. Ninguém quer que a morte aconteça, a esperança existe até o final (e às vezes até depois do final: o ucraniano Oleg Konin pintou um quadro com Ayrton Senna levantando do carro após o acidente na Tamburello). E segundo, não estou na França, não sou médico, não tive acesso a exames - e se vários médicos não estão opinando porque não viram os exames, quem sou eu pra querer dizer qualquer coisa? Sei que, sem isso, a análise fica limitada. Estou operando com duas matérias primas apenas (e elas não me permitem pintar um quadro de Konin): notícia e experiência.
A notícia você provavelmente já leu. A experiência vai nas linhas abaixo: é um texto escrito em 23 de abril de 2003, falando sobre a cobertura da morte do Daijiro Kato. Na época eu era estagiário no site F1 na Web e trabalhava com o Thiago Arantes (hoje na ESPN) e o Gabriel Vilela (por onde andará?). Coloquei alguns negritos que remetem ao caso do Schumacher.
Força, Schumacher!
* * *
Infelizmente, o Daijiro Kato acabou não resistindo aos
ferimentos provocados pelo acidente em Suzuka. Pessoalmente,
a notícia me entristeceu bastante por dois motivos: primeiro, porque eu cobri o
acidente desde que ele aconteceu. Segundo, porque este foi o primeiro acidente
fatal que cobri como jornalista. Eu já havia lido algo sobre como alguns
jornalistas cobriram o acidente do Senna em 1994 e pensei que, em proporções
menores, estava vivendo algo parecido. Sei que o tema do Kato pode acabar
enchendo a paciência se for muito batido, mas nesta coluna eu quero fazer um
retrospecto de tudo o que isto representou para mim.
6 de abril – Eu não estava escalado para a transmissão, mas
fui assistir à corrida. Trocava informações com meu amigo Jordi, de Barcelona,
apaixonado pelo esporte motor. Quando vimos o acidente, foi ele quem me falou
que o acidentado era o Kato. Chegamos a temer pelo pior quando vimos a imagem
de Kato sendo transportado, com um lençol encobrindo a filmagem. Procurei tudo
o que pude sobre o caso, troquei informações com o Jordi, escrevi várias
notícias e, naquele dia, fui dormir às 5 da manhã, já que no dia seguinte tinha
o GP do Brasil e eu não acordaria se fosse dormir mais tarde. E, logo que
acordei, abri o site para ver se tínhamos mais novidades. Naquela noite,
batendo um e-mail para os colegas de site, falei que achava que o Kato não iria
resistir. Mas pensava comigo, “ele não pode morrer”.
8 de abril – Eu fiquei furioso quando o Thiago me contou
sobre algumas notícias falando da morte do Kato. Mas ele não havia morrido.
Escrevi uma coluna falando sobre isso, que a gente deveria deixá-lo lutar
pela vida e não cometer uma infantilidade dessas. Cheguei a pensar em escrever
que “atiraram o pau no Kato”, mas achei que não era hora para brincar com isso. Além disso, na terça-feira ele deu os primeiros sinais de
melhora. Continuava gravíssimo seu estado, mas já era uma melhora. E eu
o mantinha em minhas preces.
9 de abril – As melhoras continuaram. O Kato teve
estabilizada a pressão sangüínea. Nós nos alegramos ao escrever as notícias.
10 de abril – Neste dia eu me emocionei, consegui uma
notícia em que o pai do Kato falava. Yoshio Ito, da Honda, estava praticamente
eliminando o risco de morte súbita. Não tenho medo de dizer, cheguei a chorar.
Neste dia, conversando com o Thiago Arantes, nós dizíamos que, se o Kato
sobrevivesse, teríamos que conhecê-lo algum dia. Seria uma experiência
fantástica.
13 de abril – Tive que ficar com as palavras do doutor
Claudio Costa: que, sobrevivendo ou não ao acidente, Kato já havia mostrado ao
mundo sua força ao disputar a batalha mais difícil de sua carreira. Naquele
domingo eu trabalhei sozinho e fazia já três dias que o Kato continuava sem
mudanças no quadro clínico. O Tohru Ukawa mandou uma carta aberta para a
imprensa, dizendo que não queria mais falar sobre o caso. É, numa hora assim as
pessoas precisam de tranqüilidade, é um golpe bastante duro. Mas o Kato ainda
estava vivo.
15 de abril – O doutor Costa poetizou em seu site que “ao
lado da cama, além da esperança, vigia também a amiga paciência”. Ele usou duas
palavras-chave: paciência e esperança.
17 de abril – Foi um dia em que eu pensei bastante sobre o
caso, há vários dias o Kato não dava nenhum sinal de melhora. Fiquei pensando
comigo mesmo, puxa, quanto tempo será que precisaremos esperar até que ele
apresente o próximo sinal de melhora? Uma semana? Um mês? Mais tempo? Era
realmente triste escrever uma notícia dizendo que não havia nenhuma mudança no
quadro clínico do Kato.
19 de abril – Voltando para casa, mais ou menos às 9 horas
da noite, resolvi abrir o site e ali estava, na capa, a notícia de sua morte.
Eu não esperava de jeito nenhum que fosse neste momento, mas é claro que não
foi difícil de acreditar, porque eu vivi esta notícia dia a dia e sabia como
ele estava mal. Ainda bem que quem teve que escrever esta notícia foi o Gabriel
e não eu, porque esta é uma notícia que eu nunca quereria escrever. Realmente é
duro escrever uma notícia ruim, mas isto também faz parte da profissão. O
horário e data oficiais da morte foram 0:42 (horário japonês), 20 de abril. Dia
do meu aniversário.
22 de abril – O Thiago escreveu algumas notícias de
declarações de pilotos no dia anterior, eu escrevi sobre o enterro. No dia 22 o
Kato foi enterrado, escrevi também notícias sobre homenagens. Gente que
depositava flores em Suzuka e nas motos e fotos que estavam em exposição na sede
da Honda. Gente para quem ele representava muito: a esperança do título mundial
para o Japão na principal categoria do motociclismo mundial.
Quero fazer duas considerações. Se eu não fosse jornalista,
talvez o Kato não representasse muito para mim, porque eu até assistia MotoGP
de vez em quando, mas não acompanhava, não sabia nem como era a pontuação
daquilo, até começar a trabalhar com a categoria. E se o Kato não tivesse
passado por este acidente, eu saberia muito menos sobre ele do que sei hoje. O
piloto morreu, mas o exemplo e as lições deixadas não morrem enquanto tudo isso
for lembrado.
Agora, o jornalista Manoel se cala e quem fala as próximas
palavras é o ser humano Manoel. As pessoas são o que temos de mais precioso no
mundo. O Kato não está vivo para ver as homenagens prestadas pelas pessoas
(inclusive por mim, ao escrever esta coluna). Vamos valorizar mais as pessoas
que estão perto de nós. Não vou fazer catastrofismo dizendo que não sabemos
quanto tempo vai durar cada pessoa. Vou, sim, dizer que quando valorizamos quem
está à nossa volta, o sentimento de solidão em cada pessoa diminui e um simples
gesto pode melhorar o dia das pessoas. E, se por acaso o tempo levar alguma
pessoa, ninguém precisará desesperar-se com a perda; poderá olhar para dentro e
dizer: foi bom enquanto durou.